Um rango de sexta à noite
- Paulo Metling
- 6 de abr. de 2017
- 8 min de leitura

Curitiba, 17 de março de 2017, temperatura na casa dos 22°C com mínima de 16°C, vai ser a segunda noite mais fria da semana, segundo o Sistema Meteorológico do Paraná (Simepar). Terceiro dia de greve de motoristas e cobradores do transporte coletivo, o trânsito está um caos. Preciso chegar no bairro Barreirinha, região norte da capital. Local que há quatro anos, toda sexta-feira e domingo, o Projeto Rango de Rua prepara marmitas para distribuir para pessoas em situação de rua pela cidade.
Não se sabe a data ao certo, nem o fundador, mas o Rango de Rua foi criado em 2012. Fernando, um dos coordenadores do grupo, participa do projeto desde o começo da iniciativa. A distribuição de refeições é o carro chefe do grupo, pois o Rango de Rua também faz outras ações sociais. Identifica pessoas que estão na rua e os ajuda a tirar documentação, encontrar moradia e iniciar o tratamento em clínicas de reabilitação de drogas e álcool.
De acordo com a pesquisa da Fundação de Ação Social (FAS) em parceria com o Instituto Municipal da Administração Pública (Imap), realizada entre março e abril de 2016, há quatro motivos que levaram pessoas para as ruas de Curitiba. Sendo 27% dos entrevistados envolvidos com drogas, 24,7% com álcool, 22,3% estão na rua por causa de conflitos familiares e 9,9% devido ao desemprego. Os entrevistados podiam ainda escolher duas alternativas para a motivação de estarem na rua: o álcool e as drogas são as alternativas que mais aparecem. Algumas ações sociais voluntárias se dedicam para ajudar estas pessoas por Curitiba.
Toda sexta-feira, em uma casa de fundos no bairro Barreirinha a rotina e os objetivos são os mesmos, preparo e distribuição de refeições para pessoas em situação de rua. Estão lá toda semana, o convite é destinado a quem queira participar como voluntário, desde doação de alimentos, de roupas, de dinheiro, do preparo das refeições e da distribuição. O roteiro é o seguinte: 17h00 início do preparo, 19h30 montagem das marmitas, 20h30 saída da cozinha e às 21h30 ponto de encontro no Mercado Municipal de Curitiba. “Só aparecer”, quem diz é Fernando.
O portão está aberto, entrei. No fim do corredor um barulho me conduz até a cozinha do Rango. Estando em frente aos voluntários, pedi licença e fui recebido com sorrisos. De avental e touca que protege os cabelos comecei a montar as marmitas. Num primeiro momento fui responsável pelo arroz, depois pela lavagem da louça.
Ah! O cardápio de hoje é arroz, feijão com pedaços de linguiça, abobrinha refogada com alho e macarrão ao molho vermelho. O cheiro é bom. O tempero é de Fernando e Débora, outra coordenadora do grupo.
Na casa tem cozinha, banheiro e um quarto. A cozinha comporta o fogão que ajuda no preparo da comida. Os talheres como a concha de arroz, de feijão, a faca, o pegador de massas, além das grandes panelas que cozinham mais de quilos de comida, estão à disposição dos encarregados da cozinha. Em grandes travessas estão depositados o arroz, abobrinha e macarrão. O banheiro, comum como qualquer outro, está muito organizado. O quarto tem função de dispensa. Nele está toda doação de alimentos, as prateleiras estão cheias. Agora estamos todos aqui, Fernando nos chamou para falar do Rango e de como será a noite.
Mara, Andreia, Ana, Luzia e um casal jovem prestam atenção em Fernando que dá dicas e conta histórias. Débora está na janela escutando. “O grande foco do Rango é que o Rango tem uma parte social, a gente tenta fazer o resgate do morador. Em que sentido o resgate? Às vezes a gente senta ao lado do cara, escuta a história de vida, isso muda muito”, Fernando ressalta durante as próximas horas o que diz.
Muitas histórias são contadas pelos veteranos, os calouros se animam, mas não sabem como vão reagir. Recebemos dicas de como chegar em cada local da distribuição e a forma de abordagem. Devemos andar em grupo e agir calmamente com as pessoas em situação de rua. Uma abordagem agressiva pode assustar.
– São sempre as mesmas pessoas? – pergunta Luzia.
– Setenta por cento sim. Vamos dizer que eles são muito andarilhos. Até mesmo porque não tem nenhum lugar, são realocados, até chutam eles dos seus cantos. Eles são bem andarilhos, – responde Fernando.
– A gente chega, já chegam [os moradores] abraçando, se precisarem de algo pedem na cara dura, – completa Andreia.
– Hoje você está aqui ajudando a fazer comida. Se você for na distribuição com a gente, a primeira pessoa que você entregar a marmita vai sentar e falar com você. Começa a transbordar, obrigado por lembrar de mim. É muito tesão, você realmente vê que está fazendo o bem, – diz Fernando alegremente.
– Acho que é o que você falou, às vezes querem conversar mesmo, – concorda Ana.
– Fernando e Débora tem alguma formação na área social? – indago os coordenadores.
– Não. Eu sou bióloga. – responde Débora.
– Eu não sou nada, – diz Fernando. – . Não tenho formação acadêmica.
Pessoas que ajudam pessoas
O Rango de Rua é um grupo de pessoas que ajudam outras pessoas, é assim desde o início. Fernando além de coordenar o grupo leva as marmitas na distribuição. Está desde o Natal de 2012. Cozinha, faz a montagem e distribui. Diz que o grupo já se tornou parte de sua vida e que não consegue ficar de fora.
Débora é outra que coordena o grupo. Entrou no início do Rango de Rua, faz de tudo um pouco. Com mais ou menos 1,80 de altura é objetiva no que diz, começa a contar a história do grupo de amigos que resolveram ajudar pessoas.
Andreia cuida do bazar de roupas. É veterana e ajuda tanto no preparo quanto na distribuição. Conta boas histórias e sabe da importância do Rango na vida de quem pertence a rua.
Mara fala de forma que contagia e está no grupo há dois anos. Segundo Fernando já se tornou sua amiga pessoal.
Walter, que encontrei na preparação das refeições, é falante e extrovertido. Como é advogado ajuda Fernando em casos como a falta de documentação e problemas judiciais de pessoas em situação de rua.
Luzia, 66 anos, é empresária e não é a primeira vez que participa do Rango. Já frequentou outros projetos como voluntária e gosta de colocar a mão na massa, literalmente.
Dante e sua esposa formam um casal um tanto quanto agradável. Procuravam algo que pudessem se dedicar e ajudar de alguma maneira. Já participaram de outros grupos como voluntários. O Rango surgiu na vida dos dois e não pensaram duas vezes antes de integrar à equipe. Participam desde à preparação à distribuição desta noite.
Simone é séria e acolhedora aos novos voluntários. Está há bastante tempo no Rango e é ela quem nos guiará no momento da distribuição das refeições. Abrirá caminhos aos calouros, dará dicas. Antes de ir conta histórias de pessoas que muito das vezes sabemos e fingimos não ver.
Ana é gaúcha, professora e caloura. Seu primeiro dia é hoje. Aguarda com expectativas saímos para à distribuição. Tem dois filhos, já fez outros trabalhos voluntários e veio ao Rango à convite de Luzia. Diz não saber qual vai ser sua reação hoje:
Já são 20h35, está na hora de saímos para à distribuição. Marmitas no porta malas do carro de Fernando. Quem não tem condução vai com quem veio de carro; desta vez sou carona de Luzia. Os carros estão ligados, prontos para ir.
Rota de distribuição
A rota de distribuição é fixa há quatro anos. A mesma rota, pois, toda a entrega é feita aos novos ou as mesmas pessoas. O vínculo e contato criado entre os voluntários e pessoas em situação de rua faz com que no momento que precisarem de ajuda saibam que podem contar com o Rango de Rua. Fernando faz questão de ressaltar: “em quatro anos, toda sexta-feira eu entrego uma marmita para você. Eu não vou forçar nada, nenhuma situação”.
Do bairro Barreirinha ao Cabral. A primeira parada é numa marquise de uma farmácia. Cinco pessoas dormem aqui, todos homens, que representam 89% da estatística. Cada um recebe uma marmita, suco para acompanhar e doce de abóbora que lembra os botecos do interior. Os agradecimentos são sinceros e à expectativa pela refeição é percebida ao abrirem a marmita logo que a recebem. Dois deles não comem há quase dois dias. “Deus abençoe”, um diz. Nosso ponto de referência, à direita, é a Igreja Senhor Bom Jesus do Cabral, consigo ver uma das torres luminosas.
"Há histórias que chegam e que vão sem demora, mas ali no Mercadão Municipal, tarde da noite, histórias estão presentes por um bom tempo".
Próxima parada: Santuário Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. À arquitetura é pensada, o que chama atenção é sua cor, um preto que de noite só não se torna breu por causa do Estádio Major Antônio Couto Pereira. As cores do Coxa iluminam quem dorme por ali. No reflexo das luzes verdes é que encontramos alguns moradores acordados, que tentam se aquecer com papelões. Seus olhares são tristes. Eles ficam alegres quando chegamos, entusiasmados com a refeição, agradecem e dão as mãos para cumprimentar. Retribuímos com a gentileza. O frio neste momento está intenso.
Logo à frente encontramos uma mulher com um carrinho de bebês. Na estatística de pessoas em situação de rua ela integra os 11% da população feminina. Ficamos assustados em pensar numa criança vivendo na rua. A moradora é muda e se comunica como pode conosco. No carrinho não há bebê, só plásticos. Nosso alívio é momentâneo. Descobrimos uma mulher doente que está ali. Ela aceita a refeição, já o suco e o doce recusa, mostra com as mãos que toma remédios controlados; faz sinal de positivo para agradecer a refeição.


Chegamos ao Mercado Municipal de Curitiba, local tradicional em compras da cidade. Aqui pode se encontrar orgânicos; pescados; carnes; grãos; embutidos e utensílios para a casa. Sua arquitetura da década de 1950 permite ser morada de muitos que ali se achegam, pois pela noite sobra espaço. É o ponto de encontro do grupo Rango de Rua, local com o maior número de pessoas em situação de rua na rota de distribuição. “É assustador! ”, quem diz é um dos voluntários com mais tempo de grupo.
Vejo mais de 40 pessoas na fila entre homens e mulheres. Alguns são jovens, adultos e idosos, mas nenhuma criança. Tem mais gente que não entrou na fila, estão dormindo e o nosso papel é deixar as marmitas ao lado, para que possam comer mais tarde.
Aqui tem um choque de realidade que não é vista à luz do dia. Na frente da Rodoferroviária de Curitiba, local com maior circulação de pessoas diariamente. Há histórias que chegam e que vão sem demora, mas ali no Mercadão Municipal, tarde da noite, histórias estão presentes por um bom tempo. É gente nova e idosa no mesmo espaço, cor e histórias que chegam ali e se tornam uma só: daqueles que moram na rua. Gente mal e bem vestida, um voluntário diz.
– Você viu aquele, como é bem vestido? O que está fazendo aqui? Não parece morador de rua.
- Mas é. A maioria é”, – diz outro voluntário.
Restaram ainda marmitas, mas logo ali na frente encontro, junto com Ana e Simone, quatro pessoas. Um deles fala: eu já comi, os três ali não, obrigado!
Os três recebem às refeições, sucos e doces. Valeu jovem! diz um deles. Agora sigo com Ana, sou o carona da vez e o Rango de Rua continua lá, toda sexta-feira (e domingo também) há quatro anos para quem deseja participar. É só chegar.
O colombiano e um certo João
O nome ninguém se lembra, mas era uma pessoa estrangeira. Veio da Colômbia, e como não tinha morada fez do Mercado Municipal a sua por um bom tempo em que esteve em tratamento de seu câncer. Ganhava R$ 150,00 por mês de seu país de origem para se manter em Curitiba; ajuda de órgãos municipais não tinha.
Seu transporte era as pernas. Depois do tratamento no hospital Erasto Gaertner, principal centro de diagnóstico e tratamento de doenças oncológicas no Paraná, seguia para o Mercado Municipal. Se somarmos ida e volta, do hospital no Jardim das Américas ao Mercado no centro, são quase oito quilômetros de trajeto a pé na semana. Não se ouviu mas falar do colombiano, ninguém sabe qual foi sua sentença.
Já um certo João – que invento em chamar – veio do interior do Paraná para a capital com intuito de trabalhar e construir uma nova vida, não conseguiu, ao menos na sua chegada. Por enquanto mora na rua, trabalha o dia todo e volta à noite para dormir no Mercado Municipal. Suas roupas estão limpas, diz que tem uma amiga que não pode lhe dar moradia, mas permite que tome banho e lave suas roupas. Este João, tem brilhos nos olhos em mudar a realidade que vive. Desejamos sucesso, tudo vai dar certo. Boa noite!
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