A luta pela liberdade
- Cris Souza
- 5 de abr. de 2017
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Veio ao mundo no dia nove de Junho de 1971, num distrito da cidade de Guarapuava chamado Entre Rios. Segundo sua mãe era um dia muito frio e por serem muito pobres, o bebê foi enrolado em um saco de estopa. Laysa Carolina Machado precisou procurar comida no lixo para sobreviver, mas seu maior desafio só foi superado aos 28 anos quando assumiu sua transexualidade. Atriz, radialista, escritora, poetisa e historiadora, Laysa é a primeira transexual se assumir publicamente no Brasil com cargo diretivo em uma escola.
Como foi passar a infância em uma cidade do interior?
Meus pais moravam de favor, então era tudo muito precário, uma situação vivida na década de 70, durante a Recessão, então nasci nesse âmbito econômico de sobrevivência. Na época não existia Conselho Tutelar, então eu estudava e trabalhava cortando grama, fazendo valeta, fazendo poço artesiano com meu pai, puxando carrinho de massa. Não foi nada fácil, mas era preciso sobreviver.
Você sofreu algum tipo de preconceito na infância?
No ambiente em que eu estava claro que eu sofria bullying. As outras crianças falavam coisas como “olha o veadinho” ou “esse menino é muito afeminado”. Sempre teve isso e eu ficava sempre recolhida, sendo invisível, então eu aprendi que se eu não falasse, se eu não me expusesse, se eu não tomasse a frente de nada eu não ia sofrer sanções. Então eu tecia essas estratégias da invisibilidade. Ficava sempre lá no fundo, eu não questionava, eu ficava escondida no meio dos outros.
Como foi sua adolescência, o conflito em relação ao corpo?
A parte da adolescência foi mais complicada, porque é uma fase de descobertas. Você não é criança, mas também não é adulto. Você se vê como um ET. Esses conflitos internos que são comuns a todos, são comuns com um transexual, mas claro que jogando mais luz do que com as pessoas que são cisgênero*. “O que eu vou fazer com aquilo que eu sou?” A partir do momento que o corpo começa a trabalhar dentro de uma biologia, que se institui o que é pra homem e o que é pra mulher, aí começam os conflitos. “Nasceu pelo na minha perna. Vou depilar?” “O meu corpo está se masculinizando, o que eu vou fazer?” Uma vez eu vi minhas pernas cheias de pelo e eu fui lá e depilei, quase que inconsciente do que eu estava fazendo e naquela semana eu tive aula de Educação Física. Os meninos tiravam sarro “Olha, depilou a perna, isso não é coisa de homem, é coisa de mulher”.
E na sua família, você sofreu algum tipo de preconceito?
Como a maioria das pessoas, as famílias não acolhem, não aceitam. Minha mãe, por exemplo, morreu sem me acolher, sem me querer. Meu pai é vivo, tem quase 80 anos, agora é limitado fisicamente, têm problemas na fala. Minha irmã cuida dele e não temos mais relação. De vez em quando a gente se comunica, mas a comunicação continua como sempre foi: precária. Agora devido ao que ele tem, antes devido a quem ele era.
Como foi quando você começou a tomar hormônios?
Eu passei a adolescência, a juventude, toda essa fase não fazendo uso dos hormônios. Na adolescência eu ia tomar hormônio e ia tomar um tiro também. Eu vim de uma cidade interiorana e lá matam mesmo. E como eu quis sempre me preservar, não queria morrer aos 18/20 anos, então eu protelei. Na verdade eu protelei muito, o máximo que eu pude. Contra minha vontade, mas sempre deixando mais para frente. Comecei a tomar hormônios no ano 2000. Só que quando você faz a hormonização depois dos vinte anos, ela não muda muita coisa. Porque tudo que os hormônios tinham que fazer, eles já fizeram. Então sua constituição óssea, todo o seu corpo está formado. O máximo que os hormônios vão fazer é a distribuição de gorduras, deixar a pele fica um pouco mais sedosa. O ideal é começar a hormonização aos 13, 14 anos.
Você passou a maior parte da sua vida vivendo como um homem cisgênero. Como foi o processo da sua cirurgia para redesignação de sexo?
Para mim foi necessário fazer a cirurgia. É muito particular de cada pessoa, mas dentro da minha sexualidade eu não poderia dizer “eu sou uma mulher” com um órgão genital que não condizia com aquilo que eu sei que eu sou. Algumas pessoas criticam a cirurgia, dizendo que é uma “higienização social”. Mas eu não estou me adequando para a sociedade, mas para mim.
Fiz a cirurgia em 2004, em Jundiaí. A preparação começa três anos antes, passa por todo um processo com médicos e psicólogos. Ainda tem essa exigência do CRM, que são dois ou três anos de acompanhamento psicológico para ter certeza que você quer fazer a cirurgia. A psicóloga soube que eu não estava mentindo para ninguém e nem para mim, e ela deu o laudo para que eu pudesse fazer a cirurgia. Tive que pagar porque na época o SUS ainda não cobria esse tipo de procedimento.
O resultado da cirurgia foi satisfatório, era realmente o que você esperava?
Não fiquei tão contente com o resultado da cirurgia. Foi um procedimento mal sucedido, mal feito, que me deixou traumatizada. Posso dizer que de 100%, estou apenas 40% satisfeita. Eu queria ter feito a cirurgia na Tailândia, mas como eu não tinha dinheiro para ir até lá, acabei fazendo no Brasil.
Falando um pouco da sua história como professora. Como os alunos tratam você dentro da sala?
Estou lecionando para uma turma de sexto ano, cinco turmas de sétimo ano, três turmas de nono ano e algumas turmas do Ensino Médio. Os alunos me tratam como eu me trato. Não tenho que dar satisfações para eles. Minha vida é minha vida. Se eles querem saber quem eu sou vai procurar no meu Facebook, no meu canal do YouTube. Meu perfil é aberto, não estou escondendo nada de ninguém. Mas também não tenho que dar satisfações nenhuma. Professora cisgênero não chega na sala se expondo, falando o que ela faz da vida dela. Eu como trans não preciso ficar falando o que eu faço da minha vida. Acho que meu objetivo enquanto professora é dar aula e ensinar.
Fazendo um balanço de tudo que você passou. Como está sua vida hoje em dia?
Posso dizer que estou muito mais liberta. Há um tempo eu não assumia minha transexualidade, não falava, não expunha, não palestrava e não levantava a bandeira do ativismo. Hoje eu faço tudo isso. Não pensando em mim, não pensando em fama, mas um trabalho que de alguma forma possa salvar uma vida. As pessoas que se assumem trans, não se assumiram pelas que se escondem, mas sim pelas que se assumem. São essas referências que elas foram buscar para poderem ter força para continuarem ou para se assumirem.
*Cisgênero: é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica, em todos os aspectos, com o seu "gênero de nascença”.
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